O povoado dos Pintados e a inclusão do portador da síndrome de down

O povoado dos Pintados e a inclusão do portador da síndrome de down

Na região onde há hoje a refinaria Gabriel Passos em Betim, Minas Gerais, havia antes da chegada do “progresso”, uma comunidade pequena formada principalmente pela família Freitas mais os herdeiros de uma velha fazenda retalhada e distribuída. O povoado dos Pintados. Eram pequenas chácaras cercadas por montanhas, distantes uns quatro quilômetros da Rodovia Fernão Dias, ou o que viria a ser esta. 
Todos os habitantes tinham relacionamentos familiares. Compartilhavam as tristezas, as fomes, as doenças e as alegrias.
Pois é! Havia alegrias.
Não eram raras as reuniões para um forró, festa junina ou um baile sem motivo. Se a acordeom do João Maciel arrastava um xote, logo aparecia o cavaquinho do Joaquim Lourenço, o pandeiro do Jurandir e estava formado um baile que varava a noite. Não eram necessárias as cervejas ou o tira-gosto. A música era suficiente. Quando surgia uma cachaça da boa, aí a festança fervia em alegria. As pessoas arrastavam os pés pelo chão de terra batida, dançando e cantando até o nascer do outro dia.
Neste ambiente vivia Valdir de Freitas, portador da síndrome de down, meu tio. Para mim, ainda criança, ele era igual a todo mundo. Nas festas, dançava com qualquer moça, nenhuma o desfeiteava. A comunidade inteira o tratava com tal respeito e inserção que quando ele dava na telha, dormia em qualquer casa, jantava onde queria, entrava e saia de qualquer residência, a qualquer hora. O eleito da vez apenas soltava um grito: Dona Conceição, o Didiu vai dormir aqui! Pronto! A minha avó já ficava sossegada.
Nos fins das tardes, os mais jovens reuniam para jogar futebol no campinho gramado que eles próprios construíram e cuidavam. O Valdir entrava no jogo, chutava, era driblado, caia, levantava, brigava, e saía do jogo quando desejasse. Ninguém se incomodava, ninguém apelava. Todos sabiam que ele era nervoso e cheio das vontades, então se adaptaram.
Ele era também capaz de molecagens dignas de crônica.
O meu avô, o violeiro Joaquim Gabriel era brabo, de pouca conversa, trabalhava na roça dele mesmo, e ainda sobravam forças para trabalhar nas roças onde fosse requisitado. Ele só tinha uma exigência em casa, que era lei absoluta: Na hora que chegasse da lida o café tinha que estar fumegando no canto do fogão a lenha.
Quando aproximava a hora da sua chegada, a minha avó abandonava qualquer tarefa e fazia o café. Deixava o bule esmaltado em cima do fogão. Porém ela tinha que ficar vigiando porque o Didiu costumava sorrateiramente ir ate o bule e beber todo o café, só para ver o pai nervoso. O seu Joaquim ficava possesso. A minha avó gaguejava mil explicações, mas nada impedia a ira do sertanejo. Um dia ele sentou na escada de concreto da cozinha com o bule de esmalte vazio, e o bateu no concreto, com força gritando: Cadê o meu café... cadê o meu café...
O bule ficou imprestável.
Enquanto isso o Valdir provavelmente ria em algum canto da casa satisfeito com a traquinagem.
A refinaria desapropriou o povoado inteiro e cada um dos moradores foi pra onde o dinheiro levou. O meu avó foi para a cidade grande.
Nunca mais bailes, nunca mais futebol à tarde, nunca mais o Valdir pode sair de casa sossegado. Era visto feito uma aberração nas ruas, isso o matou lentamente. Tristemente. 
A mesma tristeza levou, mais tarde, o meu avô.

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