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Mostrando postagens de 2012

Descendo... descendo...

Descendo... descendo... Descendo a escada rolante de um elegante shopping center, uma jovem se destaca. Alta, muito branca, com um vestido curto, quase transparente, deixando bem óbvio o triângulo minúsculo da lingerie. Seus quadris eram fartos e o andar, seguro. Nas panturrilhas, tatuagens tribais. No ombro direito, borboletas multicoloridas pareciam vivas. Eu quis ver seu rosto, mas uma centena de outros jovens a rodeavam e aproveitavam o momento com algazarra. Projetei seu rosto no meu imaginário: Diva da música, artista famosa, modelo internacional, ou coisa do gênero. Antes de chegarmos ao andar inferior, o telefone dela toca. Identifiquei no toque um funk carioca muito obsceno; obsceno mesmo. Então, como mágica, as borboletas da moça iniciaram uma metamorfose ao contrário. Fizeram-se lagartas cujos pelos urticantes ameaçavam as pessoas em torno. Chegamos ao andar inferior e ela atendeu ao maldito aparelho. Para cada palavra normal proferida, era expelida uma cascata

A árvore da Dona Dainha

A árvore da Dona Dainha A centenária fazenda tinha um espaço onde a família da Dona Dainha se reunia em quase todas as ocasiões. Era debaixo de uma árvore enorme que havia no quintal. Sob a grande copa verde eram comemorados os natais, as festas juninas, os aniversários e todas as outras reuniões dessa tradicional família mineira. De geração a geração, era lá que as crianças se reuniam para as brincadeiras de toda tarde. Por isso, a árvore virou uma referência para a memória de todos os que viveram na fazenda. Contudo, a hidroelétrica de Furnas desapropriou as fazendas da região e alagou tudo. A árvore ficou submersa. Para gerar energia, a empresa pagou uma miséria pela fazenda e não pagou nada pelas histórias, nem pelas memórias dos habitantes que tinham naquele lugar raízes tão profundas quanto as da árvore. 30 anos se passaram e a árvore virou personagem dos “causos” nostálgicos daquela gente. O Sr. Luiz Mendes é religioso, correto, ético e, apesar de ser um homem ri

O usurpador

O usurpador Depois de usurpar o trono, o príncipe, como leão novo, lança um longo olhar para o reino decadente e os cortesãos genuflexos. Soberbo e altivo, desfere o golpe de misericórdia: – Pai, o senhor foi incompetente. Com o potencial deste reino você poderia ser muito rico. O pai, que havia se debatido como presa mordida na garganta, aquietou-se resignado, mas, antes do suspiro derradeiro, respondeu: – É verdade, eu teria sido um milionário, porém investi tudo que recebi te proporcionando as melhores e mais caras escolas, cursos e faculdades. Apliquei nos carros que você destruiu, nas suas viagens; nas aulas de artes marciais, academias e escolas de músicas. Gastei pagando os seus cartões, contas em restaurantes, motéis e clubes sociais de luxo. Usei fortunas pagando suas roupas de marcas finas e fazendo todas as suas vontades. Enfim, toda a riqueza que resta ao nosso mundo está em você. Então, o príncipe lacrou a porta do calabouço, abandonando o velho para sempre.

O Deus da Rua Carijós

O Deus da Rua Carijós. Depois das 23 horas a cidade muda de comportamento. Surge outro mundo com os ratos, as baratas e os morcegos. Ali pelas bandas da Rodoviária de Belo Horizonte o insólito inexiste, pode-se encontrar desde decrépitas prostitutas seminuas a belos travestis vestidos de Carmem Miranda ou de Michael Jackson. Muitos bêbados solitários, os zumbis do crack e os exploradores desta miséria toda. Um bêbado descia a Rua dos Carijós cambaleando muito e cantando um samba antigo. Dezenas de pessoas com aspectos cansados se enfileiravam no ponto de um ônibus que vai para a periferia. Uma van de transporte clandestino pára na fila, e recolhe as pessoas que podem pagar a passagem. Deixa para o coletivo legalizado um número enorme de idosos e outros que tem passes livres. No transporte clandestino só entra quem pode pagar a passagem. O Bêbado continua a cambalear. Quando a van tenta arrancar é impedida por ele. O motorista põe a cabeça do lado de fora e com a educação p

Tudo se resolverá.

Tudo se resolverá se... Tudo se resolverá quando me sobrar tempo, Tudo se resolverá quando eu observar o mundo da cobertura do Mangabeiras, Ou quando eu me esconder de tudo na casa de Guarujá. Tudo se resolverá quando eu olhar o mundo da janela fechada da minha i-xis-trinta-e-cinco. Tudo se resolverá nas férias em Trancoso. Tudo estará perfeito nas praias de Fernando de Noronha. Tudo se resolverá se alguém assinar os papeis, Ou se não assinar os papeis e eu não me importar mais. Tudo se resolverá se o mundo e o céu ficarem da cor ardósia daqueles olhos ardósias. Tudo se resolverá se o mundo acabar ou se não acabar e ainda restar a brisa nos cabelos dela. Tudo se resolverá se eles assinarem o protocolo. Ou se os números da loteria caírem no meu colo. Tudo se resolverá se eu me for para o mato. Tudo se resolverá se na cidade um coelho parar de roer os contratos. Tudo se resolverá se ele engasgar na ambição e na gula enorme. Tudo se resolverá se o uru

O diabo que está lá fora. Funk.

Funk... funk... funk... Torpe, pobre e inconveniente. Funque-se o mundo! Funquem-se as mentes! Treme a terra, Treme a janela tremeluzente. Dentro do apartamento Uma criança modorra, E tem febre e bate os dentes: _Mãe, o que é boceta? _É a Caixa de Pandora. _ ??? _Mãe o que é fodido? _É o diabo que está lá fora. Funk... funk... funk...

A MUSA, O PLAYBOY E O JUMENTO

A MUSA, O PLAYBOY E O JUMENTO Hoje eu vou contar uma história de desconfiança, de imaturidade, de ignorância e de quebra: de arrependimento. Vou contar o milagre sem contar os milagreiros. Então vou dizer “musa” e “playboy” no lugar dos nomes. O playboy era o “pegador” do bairro. Foi o primeiro da turma a ter carro, só andava nos trinques e era bonito e bem cuidado. Falava bem, era de uma família de melhor nível cultural e abastada para o padrão daquele bairro miserável. A mãe era professora e o pai funcionário público. Por isso tudo ele era o tal. E era meu “amigo”. A musa era a minha namorada. Linda, olhos claros, ardósia, boca farta de lábios e risos. E era a minha namorada. Não sei bem o quê ela via em mim, pobretão e feio, mas éramos alegres e cheios de planos. Eu a ajudava na escola e ela melhorava a minha autoestima. Era a minha namorada. Um dia o playboy me chamou para um papo reservado: _Bicho, você sabe que eu sou seu amigo, então é minha obrigação te contar

Moradores de rua

No percurso entre a Estação Central do metrô de Belo Horizonte e a Avenida Afonso Pena, passando pela Aarão Reis, depois por baixo do viaduto de Santa Teresa, a gente encontra uma infinidade de mendigos e moradores das ruas. Bem cedo e alguns já estão caídos bêbados, outros já estão pedindo aos passantes moedas para “tomar café”. Eu me canso de me indignar, e ficar deprimido por eles. Para mim o ser humano tem que ter o mínimo para ser “humano”. Um lugar para onde ir, onde possa ficar sozinho e remoer as mazelas, amigos em quem possa confiar, referências familiares, um cantinho onde possa deixar seus mimos; o mínimo.     O morador de rua, já bêbado de manhã, me pára na Aarão Reis e estende a mão para pedir algo. Eu lhe ofereci a minha cara mais deprimida possivel. Ele percebeu e disparou: _Credo, “Véio”, cê ta pior que eu, vai com Deus. Fiquei pensando em Deus.